1 de julho de 2008

o galo de barcelos


o galo de barcelos é, seguramente, a principal personagem do ‘figurado’ barcelense.
não sendo claro quando se começou a fazer este ‘figurado’ galináceo, duma coisa podemos ter a certeza: só tem o apelido de barcelos há, relativamente, pouco tempo.
a razão é simples: a principal zona do actual concelho de barcelos onde se produz o figurado fazia parte do concelho do prado até 1855.
daí que o figurado, ainda durante o começo do século passado, fosse conhecido como a ‘olaria do prado’.
e durante muito tempo o galo não teve um tratamento preferencial relativamente aos outros animais que acompanhavam a vida dos barcelenses e que serviam de modelos naturais para os oleiros: os galos, os bois de trabalho, as cabras, os cães, os sardões, tudo o que rodeava os oleiros lhes servia de modelo.
a autoria do actual galo de barcelos é um assunto bastante discutido e com defensores de diferentes paternidades.
um dos mais citados como sendo o ‘pai do galo’ é joão domingos rocha, pai da conhecida ceramista rosa cota e avô das irmãs júlia e emília cota, hoje figuras incontornáveis do figurado barcelense. rosa cota várias vezes reivindicou essa condição para o seu pai (que nunca se terá preocupado em reivindicar coisa alguma), e no mesmo sentido seguiram as suas netas.
joão macedo correia, um dos maiores estudiosos do figurado de barcelos, afirmava em 1960 que o ‘primeiro galo tinha sido modelado pelo emílio do parral, irmão do mudo do parral’, para o qual francisco de sousa, ainda muito novo, ‘apenas abriu na roda o pedestal e o corpo’. no entanto, anny tual-bordier escreveu no seu ‘premier rencontre avec la poterie de barcelos’ que 'foi em 1927, em braga, na feira de amostras do minho’ que o seu formato e decoração mudaram’ e que ‘o seu primeiro autor teria sido afinal francisco sousa, o popular ti francisco do monte’ e que o seu amigo, irmão do mudo do parral, desolado por ver muitos dos seus galos partirem no forno, teve a ideia de fabricar a base e o corpo do galo na roda. como não sabia trabalhar na roda, terá pedido a francisco sousa que o fizesse.
não andamos muito longe uns dos outros: de joão domingos rocha, ou coto como toda a sua familía ainda hoje é conhecida: cotos e cotas (ao que parece devido a um antepassado a quem faltavam algumas pontas dos dedos), ao mudo do parral, ou o irmão emílio, ou a francisco sousa, andamos sempre num circulo fechado de pessoas em redor das quais o galo, que sempre fez parte do figurado barcelense, se começou a encaminhar para aquilo que é hoje.

mas o que transformou aquilo que poderia nunca ter passado de um dos temas do figurado barcelense num ícone nacional?

duas pessoas foram determinantes para essa transformação:
antónio ferro e gonçalves torres.

antónio ferro foi um dos principais arquitectos do fascismo. e um dos seus homens mais perigosos.
perigoso porque, ao contrário da imensa maioria dos fascistas, era inteligente e culto.
e usou essa inteligência e cultura para a construção da imagem do fascismo português.
era necessário criar o estereotipo do português honesto e trabalhador; pobre mas honrado, de muitas graças a deus e poucas graças com deus e uma postura um pouco altiva e orgulhosa em coisas que não fossem realmente importantes para a sua emancipação, liberdade e afirmação enquanto povo: orgulho no império do minho a timor, orgulho na ilusão de ter o melhor vinho, a melhor comida, a música mais melodiosa, as paisagens mais bonitas, as aldeias mais bonitas... tudo coisas que a imensa pobreza do povo português não tinha oportunidade de comparar.
em 1933, antónio ferro, cria o secretariado da propaganda nacional e rapidamente passa ao ataque.
no ano seguinte avança com a 1ª exposição colonial portuguesa, no ano seguinte levou a genebra uma enorme exposição de arte popular e a partir daí nunca mais parou.
em 1938 realiza o concurso da aldeia mais portuguesa e escolhe para troféu um galo de prata. mas se estava escolhido o símbolo, ainda não estava determinada a forma.
fazia parte da estratégia de antónio ferro a construção de uma série de elementos que servissem de icones históricos e culturais duma identidade nacional única.
e nada melhor que as comemorações centenárias (onde se cometeram alguns crimes com a alteração do castelo de guimarães ou do paço dos duques de bragança, já que era necessário que o local ‘onde nasceu portugal’ tivesse a dignidade do começo dum império, e o mesmo se passou no castelo da capital do império) para a massificação da divulgação do objecto escolhido.
como não existia um símbolo da cultura popular (já que a ‘aldeia mais portuguesa de portugal’ não era fácil levar às costas) era necessário pegar num e promovê-lo massivamente.
e essa escolha caiu sobre o galo de barcelos, no qual antónio ferro viu potencialidades para os seus propósitos.
o destaque que teve no pavilhão do centro regional e na reconstituição das aldeias portuguesas (e que mais tarde serviu de base para o museu de arte popular no final da década de 40) foi determinante para esse efeito unificador de símbolo da arte popular cheia de cor e vida e que fosse possível apresentar como representante nacional e não simplesmente de uma região.
mas quem visitar hoje o museu de arte popular ou qualquer outro museu de arte popular onde os galos estejam representados, não vai encontrar com facilidade o modelo que hoje conhecemos. vai encontrar muitos galos vagamente parecidos mas ainda não com a forma e as cores de hoje.
a forma e as cores que hoje lhe conhecemos são-lhe dadas por gonçalves torres e um seu cartaz da festa das cruzes em 1955 dá a conhecer essa forma:
policromado, porte altivo, crista bem levantada, corpo gordo. E como dizia um seu conterrâneo e contemporâneo no jornal de barcelos em 1957 ‘há tempos, o gonçalves torres, meteu-se a aperaltar este nosso galo, e, saiu-lhe então das mãos o moderno galo de barcelos’.
estava então criado o simbolo no modo que hoje o conhecemos, já que pelo meio houve (e ainda hoje se produzem em reduzidíssimas quantidades) muitos outros galos, como o galo da felicidade, ou do noivado com a base em braco, ou ainda versões onde predomina o azul.
a necessidade de reproduzir muitas cópias também parece ter sido a razão porque a forma original de colocar as flores em barro moldado hoje caiu em quase completo desuso (na minha última incursão pela feira apenas vi um exemplar, que comprei) para ser substituido pela pintura policromada sobre a base preta.

talvez volte ao assunto que isto ja vai (bastante) longo....

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